Trombados no Espaço

Trombados no Espaço
Colisão de cargueiro danifica estação Mir e expõe problemas da indústria espacial da Rússia
Izalco Sardenberg

Há onze anos em órbita em torno da Terra, a estação Mir sobreviveu a vários acidentes e situações de emergência. Já houve incêndio, pane no sistema de refrigeração, vazamento e até entupimento de privada. Nada, porém, se compara em gravidade à trombada espacial com uma nave cargueiro de 7 toneladas, na quarta-feira passada. O choque a 390 quilômetros acima da superfície do planeta avariou um dos quatro painéis de energia solar, cortou cabos de energia e abriu um rombo de 3 centímetros quadrados na fuselagem de um dos módulos, que precisou ser abandonado. Faltou pouco para que os três astronautas a bordo da Mir, dois russos e um americano, fossem forçados a voltar à Terra. Na escala de emergência do centro de controle da estação , nos arredores de Moscou, o acidente foi considerado de nível de alerta cinco. Se chegasse a sete, a tripulação teria de embarcar na nave Soyuz, uma espécie de salva-vidas espacial permanentemente acoplado à Mir, e abandonar a estação .
Ao que tudo indica, o retorno antecipado não será necessário. Nesta sexta-feira, uma nova nave cargueiro deve decolar do cosmódromo de Baikonur, no Casaquistão, levando o material necessário para consertar o Spectr (o módulo da Mir atingido na colisão);, e, sobretudo, recolocar em ordem o sistema gerador de eletricidade da estação . Se der tudo certo, a única estação orbital tripulada continuará no espaço, realizando pesquisas científicas e quase esquecida pela maioria das pessoas aqui embaixo. Mas, com a Mir, nunca se sabe. Em órbita desde 1986, quando a Rússia era ainda União Soviética, a estação tinha uma perspectiva de vida útil de cinco anos. Como já dobrou esse período, encontra-se naquela situação do carro velho que quebra toda hora, faz barulho e queima óleo. Os russos, que dominam como ninguém a tecnologia de permanência no espaço, garantem que agüenta o tranco até sua aposentadoria, no ano que vem, quando será substituída pelo primeiro módulo da estação Alpha. Esse é um projeto de 30 bilhões de dólares, com participação da Rússia, dos Estados Unidos, do Canadá, do Japão e de países europeus.
A maior dúvida, na realidade, não é se a Mir resiste até a hora da substituição — mas se a substituição está mesmo sendo providenciada. A Rússia já adiou várias vezes a entrega da sua parte no projeto, exatamente o núcleo central em torno do qual se organizará a estação . A razão é simples: falta dinheiro. No final dos anos 80, quando a Mir subiu, o programa espacial , então soviético, contava com a generosa dotação de 2,9 bilhões de dólares por ano. Hoje, com o fim do comunismo e a desideologização da corrida no espaço, precisa se virar com 20% desse valor. Não é por outra razão que os russos, que venceram os americanos na corrida para lançar o primeiro satélite em órbita e, depois, colocar o primeiro homem no espaço, agora apareçam no noticiário sobretudo por seus fracassos. O pior deles foi o lançamento de uma sonda em direção ao planeta Marte que se estatelou no Pacífico, no ano passado.

Sem ginástica — Ainda não se sabe se o desastre com a Mir foi causado por alguma falha nos circuitos ou por barbeiragem de seu comandante, o russo Vassili Tsibliiev, que movimentava a nave cargueiro por controle remoto no momento da batida. O cargueiro, que transporta equipamentos e comida para a Mir, e na viagem de volta leva lixo, estava engatado havia três meses. Ao fazer um teste de acoplamento, Tsibliiev soltou-o e tentava trazê-lo, quando, desgovernado, o cargueiro atingiu um dos painéis de captação de energia solar. Numa segunda batida, a nave perfurou a fuselagem do Spectr. Com perda de oxigênio, o módulo teve de ser fechado e isolado imediatamente do restante da estação .

Satélites espiões — A Mir é um conjunto de módulos interligados, cada um com uma função. O Spectr, engatado em 1995, dispõe de equipamento para pesquisa de partículas da órbita terrestre e quatro painéis captadores de energia solar. Servia também de dormitório ao astronauta americano Michael Foale, que, com Tsibliiev e o engenheiro de vôo russo Alexander Lazutkin, completa a tripulação da Mir. Ficar sem a pesquisa das partículas até que não é grave. O problema é que a colisão cortou cerca de 30% do fornecimento de energia da Mir. Para economizar eletricidade, os tripulantes tiveram de ficar no escuro e cancelar outros experimentos científicos. Foale, que deixou seus pertences pessoais no Spectr, teve de pedir à Nasa nova escova e duas pastas de dente.
Acidentes acontecem, mas a indigência do programa espacial russo é motivo de encrencas sucessivas. Sete meses atrás, quando os tanques que armazenam o esgoto da Mir se entupiram, os tripulantes foram orientados a bombear os dejetos manualmente. Em vão procuraram a bomba manual, que deveria estar a bordo. Só um mês depois o esgoto foi desentupido. Em fevereiro, a explosão de um tanque de oxigênio de emergência causou um incêndio que, por falta de equipamento adequado, demorou catorze minutos, uma eternidade numa estação espacial , para ser debelado. Na Cidade das Estrelas, centro de treinamento de astronautas na periferia de Moscou, o simulador de vôo tem mais de dez anos de uso. Em desespero de causa por uns trocados, o centro aceita turistas dispostos a brincar de astronauta por um dia. Preço: 1.000 dólares.
Além da falta de dinheiro, o programa russo ainda se ressente de velhas manias soviéticas. A obsessão de segredos, por exemplo, baniu os manuais impressos e obriga até hoje os astronautas a decorar todos os procedimentos. No ano passado, num momento de teatro do absurdo, ninguém soube identificar um pedaço de equipamento encontrado a bordo da estação . A crise financeira já atingiu o programa espacial militar russo, outrora intocável. Desde setembro do ano passado, pela primeira vez em mais de duas décadas, os militares russos ficaram sem seus satélites espiões Kosmos, usados para vigiar movimentos de tropas em fronteiras problemáticas.

Flores a Lenin — Nem tudo é má notícia, contudo. Apesar da montanha de problemas, os russos ainda têm tecnologia espacial de ponta e capacidade instalada para sair do atoleiro. Na verdade, já começaram a tirar o pé da lama com a atual demanda mundial por foguetes que colocam satélites em órbita. Seu principal produto, o foguete Proton, é tão seguro e barato que virou estrela de mercado. A fábrica de foguetes Khrunichev, em Moscou, um hangar do tamanho de dois campos de futebol, funciona ininterruptamente para atender a um pacote de encomendas de 500 milhões de dólares feitas por multinacionais americanas como a Lockheed, a Boeing e a Hughes Electronics. Os foguetes Proton também colocarão em órbita 21 dos 66 satélites de irídio da Motorola, formando uma rede de telecomunicações que permitirá que se fale com um telefone celular em qualquer canto do planeta.
A rede de comunicação militar, com oitenta satélites em boas condições, está negociando a prestação de serviços para várias empresas da área de telecomunicações. Até no centro de controle de vôo da Mir já se pode ver o resultado dos recursos que vêm do Ocidente para o programa espacial russo. Do lado de fora do prédio, a estátua de Lenin está sempre enfeitada com flores depositadas por funcionários do centro, saudosos da era comunista, quando eram tratados a pão-de-ló em comparação com o resto da população. Mas no 2º andar instalou-se uma cópia do centro de controle da Nasa em Houston. A própria Nasa está desembolsando 400 milhões de dólares para colocar seus astronautas na Mir e não pode dar-se ao luxo de pular fora do programa, pela simples razão de que precisaria de muitos anos, e vários bilhões de dólares, para adquirir por sua conta a tecnologia russa de permanência no espaço.


A fuselagem do módulo Spectr foi atingida depois do painel solar (abaixo);. A batida fez um furo de 3 centímetros no módulo, provocando vazamento de oxigênio. A tripulação fechou e isolou o módulo do resto da Mir e tentará consertar os estragos até o fim do mês

Dirigido por controle remoto, o cargueiro desviou-se do ponto de engate e trombou com um dos painéis solares do módulo Spectr. A batida cortou 30% da eletricidade da Mir