O Brasil 'vai para o espaço'
O Brasil 'vai para o espaço'
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
do Conselho Editorial
A lenda conta que, interpelado quanto às suas frequentes "reproduções" de fábulas do mítico Esopo, de Fedro e de outros, respondeu La Fontaine: "Ah, mas somente aquelas que merecem a minha caneta". Parodiando o presunçoso mestre francês, reproduzo uma história universal que merece sempre ser repetida, pois ilustra, admiravelmente, o "modus operandi" do "planejamento" no Brasil. Ao entardecer, estava acocorada em torno de um "fogo" uma meia dúzia de camponeses, quando se aproximou um cigano. "Posso usar seu fogo para fazer uma sopa? ... Por favor me emprestem uma panela com água, pois só preciso desta pedra." Quem resistiria? E a pedra lá foi para a panela. "A água já está fervendo, basta que me dêem uma colher de sal... E certamente não farão diferença para tão ricos cavalheiros duas ou três batatas... E vejo que sobrou do almoço um pedaço de linguiça... E só falta uma cabeça de cebola e um dente de alho para o tempero... Agora tiro minha pedra para a próxima ocasião, tomo a sopa e vou-me embora." E os camponeses lá ficaram maravilhados com o cigano, que conseguiu fazer uma sopa tão apetitosa só com uma pedra.Pois bem, a participação do Brasil no programa denominado Estação Espacial Internacional (ISS); custaria somente US$ 120 milhões. Agora, e a água da sopa nem começou a ferver, já se reconhece que talvez chegue a US$ 300 milhões. Em realidade, essa imprecisão é inerente ao projeto, pois o Brasil estaria se comprometendo com uma cota percentual dos custos, e não com uma parcela fixa. A cada acidente, o custo para o Brasil seria aumentado. Na semana passada, a Nasa (agência espacial dos EUA); anunciou o erro de um foguete que custou US$ 1,2 bilhões. Assim, como em alguns dias já passou o orçamento de US$ 120 milhões para US$ 300 milhões, poderá em alguns anos chegar a bilhões.Mas os resultados para o Brasil serão magníficos, dizem os ciganos, a começar pela cura do mal de Chagas, responsável por muito da miséria brasileira. O astronauta americano Roger Crouch, ao ativar a primeira experiência brasileira no espaço, teria quase chegado ao orgasmo por estar salvando tantos brasileiros da doença. E isso não vale umas duas ou três batatas na sopa de pedra?Será que somos, nós todos brasileiros, idiotas? Mas não podemos reclamar. Afinal, nossos senadores acreditaram que o ministro da Fazenda não havia sido informado de que uma solução fora encontrada e providências foram tomadas para impedir a catástrofe iminente no sistema financeiro nacional. E ele se achava na sala ao lado e não estaria em coma profundo. Ou estaria?É preciso também dar uma aparência de legitimidade à participação brasileira. Seguindo a retórica do lobby favorável à participação do Brasil no projeto, é o crescimento de cristais de macromoléculas, em ambiente dito de microgravidade, que seria a principal justificativa para os referidos investimentos. E, assim sendo, estaríamos em boas mãos, pois o líder do programa é Lawrence De Lucas, da Universidade de Alabama, famosa devido ao seu time de basquete. O referido gênio teria sido eleito um dos 18 cientistas do mundo capazes de revolucionar a ciência do século 21, segundo o jornal "The Times", de Londres. É de ser elogiada essa incrível vocação "nostradâmica" do periódico inglês, pois, no acervo acadêmico do referido cientista, se registra um número de citações da sua obra que é inferior ao de citações relativas a dezenas de pesquisadores brasileiros que atuam na mesma área genérica, a bioquímica. Ou o Brasil está realmente muito bem, ou a profecia do "The Times" é um pouco precipitada.Por outro lado, se, de fato, houvesse substancial expectativa de que o programa contribuísse de maneira significativa para erradicar o mal de Chagas, então valeria a pena aplicar esses US$ 120 milhões, ou US$ 300 milhões, ou até vários bilhões de dólares no programa.Todavia vejamos as reais expectativas. Nove experiências foram feitas por cientistas brasileiros. Oito dos cristais já haviam crescido na Terra. Dos 9 que "foram pro espaço", só 4 cresceram. Não cresceu aquele que também não cresceu em Terra e se constataram mais 4 insucessos entre os 8 cristais que cresceram com sucesso em Terra. Dos 4 que tiveram sucesso, somente 1 mostrou qualidade comparável à do cristal homólogo obtido na Terra. Os outros três foram nitidamente inferiores. A estatística relativa a experiências similares em outros países não é diferente.O crescimento de cristais no espaço é apenas mais uma das dezenas de direções em que o avanço da qualidade de cristais de macromoléculas pode e deve prosseguir. Há dezenas de outras opções tecnológicas a ser perseguidas, todavia, e muito menos dispendiosas.Pois bem, não restam dúvidas de que é desejável que cristais moleculares continuem a ser "crescidos" na ausência de gravidade terrestre, como tem sido feito até agora, ocupando um espaço cedido generosamente por programas que têm outras finalidades. Que se pergunte, entretanto, a qualquer cientista envolvido nesse programa o que escolheria se tivesse a opção, de um lado, de realizar o projeto no espaço e, de outro, a de dispor dos recursos equivalentes à participação de sua experiência na ISS para o uso em seu laboratório terrestre. Por outro lado, que se pergunte também aos especialistas em doença de Chagas o que significaria se aplicássemos US$ 300 milhões em um programa científico coerente para encontrar solução para a cura da terrível praga. E não seria essa a opção inteligente para o Brasil?Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 67, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas); e membro do Conselho Editorial da Folha.
ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE
do Conselho Editorial
A lenda conta que, interpelado quanto às suas frequentes "reproduções" de fábulas do mítico Esopo, de Fedro e de outros, respondeu La Fontaine: "Ah, mas somente aquelas que merecem a minha caneta". Parodiando o presunçoso mestre francês, reproduzo uma história universal que merece sempre ser repetida, pois ilustra, admiravelmente, o "modus operandi" do "planejamento" no Brasil. Ao entardecer, estava acocorada em torno de um "fogo" uma meia dúzia de camponeses, quando se aproximou um cigano. "Posso usar seu fogo para fazer uma sopa? ... Por favor me emprestem uma panela com água, pois só preciso desta pedra." Quem resistiria? E a pedra lá foi para a panela. "A água já está fervendo, basta que me dêem uma colher de sal... E certamente não farão diferença para tão ricos cavalheiros duas ou três batatas... E vejo que sobrou do almoço um pedaço de linguiça... E só falta uma cabeça de cebola e um dente de alho para o tempero... Agora tiro minha pedra para a próxima ocasião, tomo a sopa e vou-me embora." E os camponeses lá ficaram maravilhados com o cigano, que conseguiu fazer uma sopa tão apetitosa só com uma pedra.Pois bem, a participação do Brasil no programa denominado Estação Espacial Internacional (ISS); custaria somente US$ 120 milhões. Agora, e a água da sopa nem começou a ferver, já se reconhece que talvez chegue a US$ 300 milhões. Em realidade, essa imprecisão é inerente ao projeto, pois o Brasil estaria se comprometendo com uma cota percentual dos custos, e não com uma parcela fixa. A cada acidente, o custo para o Brasil seria aumentado. Na semana passada, a Nasa (agência espacial dos EUA); anunciou o erro de um foguete que custou US$ 1,2 bilhões. Assim, como em alguns dias já passou o orçamento de US$ 120 milhões para US$ 300 milhões, poderá em alguns anos chegar a bilhões.Mas os resultados para o Brasil serão magníficos, dizem os ciganos, a começar pela cura do mal de Chagas, responsável por muito da miséria brasileira. O astronauta americano Roger Crouch, ao ativar a primeira experiência brasileira no espaço, teria quase chegado ao orgasmo por estar salvando tantos brasileiros da doença. E isso não vale umas duas ou três batatas na sopa de pedra?Será que somos, nós todos brasileiros, idiotas? Mas não podemos reclamar. Afinal, nossos senadores acreditaram que o ministro da Fazenda não havia sido informado de que uma solução fora encontrada e providências foram tomadas para impedir a catástrofe iminente no sistema financeiro nacional. E ele se achava na sala ao lado e não estaria em coma profundo. Ou estaria?É preciso também dar uma aparência de legitimidade à participação brasileira. Seguindo a retórica do lobby favorável à participação do Brasil no projeto, é o crescimento de cristais de macromoléculas, em ambiente dito de microgravidade, que seria a principal justificativa para os referidos investimentos. E, assim sendo, estaríamos em boas mãos, pois o líder do programa é Lawrence De Lucas, da Universidade de Alabama, famosa devido ao seu time de basquete. O referido gênio teria sido eleito um dos 18 cientistas do mundo capazes de revolucionar a ciência do século 21, segundo o jornal "The Times", de Londres. É de ser elogiada essa incrível vocação "nostradâmica" do periódico inglês, pois, no acervo acadêmico do referido cientista, se registra um número de citações da sua obra que é inferior ao de citações relativas a dezenas de pesquisadores brasileiros que atuam na mesma área genérica, a bioquímica. Ou o Brasil está realmente muito bem, ou a profecia do "The Times" é um pouco precipitada.Por outro lado, se, de fato, houvesse substancial expectativa de que o programa contribuísse de maneira significativa para erradicar o mal de Chagas, então valeria a pena aplicar esses US$ 120 milhões, ou US$ 300 milhões, ou até vários bilhões de dólares no programa.Todavia vejamos as reais expectativas. Nove experiências foram feitas por cientistas brasileiros. Oito dos cristais já haviam crescido na Terra. Dos 9 que "foram pro espaço", só 4 cresceram. Não cresceu aquele que também não cresceu em Terra e se constataram mais 4 insucessos entre os 8 cristais que cresceram com sucesso em Terra. Dos 4 que tiveram sucesso, somente 1 mostrou qualidade comparável à do cristal homólogo obtido na Terra. Os outros três foram nitidamente inferiores. A estatística relativa a experiências similares em outros países não é diferente.O crescimento de cristais no espaço é apenas mais uma das dezenas de direções em que o avanço da qualidade de cristais de macromoléculas pode e deve prosseguir. Há dezenas de outras opções tecnológicas a ser perseguidas, todavia, e muito menos dispendiosas.Pois bem, não restam dúvidas de que é desejável que cristais moleculares continuem a ser "crescidos" na ausência de gravidade terrestre, como tem sido feito até agora, ocupando um espaço cedido generosamente por programas que têm outras finalidades. Que se pergunte, entretanto, a qualquer cientista envolvido nesse programa o que escolheria se tivesse a opção, de um lado, de realizar o projeto no espaço e, de outro, a de dispor dos recursos equivalentes à participação de sua experiência na ISS para o uso em seu laboratório terrestre. Por outro lado, que se pergunte também aos especialistas em doença de Chagas o que significaria se aplicássemos US$ 300 milhões em um programa científico coerente para encontrar solução para a cura da terrível praga. E não seria essa a opção inteligente para o Brasil?Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 67, físico, é professor emérito da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas); e membro do Conselho Editorial da Folha.

