A estação espacial brasileira

A estação espacial brasileira
Se deixarmos passar a chance de participar desse grupo seleto, daremos um vexame que não nos beneficiará
ALDO VIEIRA DA ROSA

Em 19 de setembro de 1783, na presença de Luís 16, um balão de ar quente, construído pelos irmãos Montgolfier, subiu aos céus de Versalhes levando um pato, um galo e uma ovelha. Isso marcou o primeiro acidente aeronáutico do mundo (descontando Ícaro);: a ovelha deu um coice no galo, quebrando sua asa. De resto, o experimento foi um sucesso. Dizem que um puxa-saco do rei perguntou: "Para que serve essa brincadeira?". Luís 16, incaracteristicamente, respondeu: "Para que serve uma criança recém-nascida?".Essa sabedoria do rei da França se aplica até hoje à maioria das descobertas científicas. É difícil ao extremo prever seus resultados práticos. O dilema dos que têm de aprovar verbas para pesquisa reside exatamente no fato de que o teste de praticabilidade não é um critério apropriado. Se uma proposta tem óbvia aplicação, ela é, quase certamente, assunto para desenvolvimento, não para pesquisa. Fundos são sempre limitados, e a aprovação de uma proposta de pesquisa significa invariavelmente a rejeição de outras. Daí o constante duelo entre os proponentes.Discute-se a contribuição brasileira para construir a futura Estação Espacial Internacional (ISS);, cujos componentes iniciais já foram lançados ao espaço. Isso nos custará uns US$ 120 milhões (em cinco anos);; é totalmente impossível predizer se esse dinheiro seria mais bem empregado noutra atividade.Claro que bons argumentos em favor do uso desses fundos para atividades espaciais podem ser apresentados. Primeiro: o dinheiro não sai do Brasil. Não vamos contribuir para uma caixinha a ser usada por outros. Vamos encomendar à nossa indústria o desenvolvimento e a construção de seis diferentes itens estruturais da estação. A Embraer será o contratante principal; presumivelmente, fará subcontratos com outras indústrias brasileiras. Isso se traduzirá em íntimos contatos do nosso pessoal com organizações estrangeiras (principalmente a Boeing);. O significado político, científico e tecnológico de tais contatos pode vir a ser considerável.Teremos também a oportunidade de usar (modestamente); a Estação Espacial Internacional para estudos de nosso interesse. Para citar apenas um exemplo, há no nosso país doenças tropicais endêmicas cuja cura nos interessa grandemente, mas é de baixa prioridade para outros. Boa parte da farmacologia moderna baseia-se na identificação e na síntese de proteínas específicas. Isso pode ser feito muito mais eficazmente no espaço: a ausência de gravidade permite o crescimento de cristais grandes e perfeitos.O pessoal do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais); está em ótimas condições de apresentar razões de peso justificando nossa colaboração com esse programa espacial. Por outro lado, há, sem dúvida, projetos que competem com os do Inpe, apoiados também em excelentes razões. A decisão final tem de ser feita na base de considerações políticas, além das científicas.A descrição da estação preparada pela Nasa diz textualmente: "Liderada pelos EUA, a ISS usa recursos científicos e tecnológicos de 16 nações: Canadá, Japão, Rússia, 11 nações da Agência Espacial Européia e Brasil". Portanto o programa é dominado por norte-americanos e europeus. Só dois outros países foram convidados a contribuir _Japão e Brasil. Ninguém da África ou da Ásia continental, ninguém mais da América Latina. Sob qualquer ponto de vista, isso honra nosso país e demonstra a confiança que outros têm na nossa capacidade tecnológica (mais que nós);.Oportunidades perdidas não voltam mais. Se deixarmos passar a chance de participar desse grupo seleto, daremos um vexame que, indubitavelmente, não nos beneficiará. Investindo menos de US$ 0,20 anuais "per capita", compramos vantagens difíceis de quantificar, mas nem por isso menos reais. Temos a chance de demonstrar nossa capacidade tecnológica aumentando nossa credibilidade nesse campo. Nossas exportações de produtos aeronáuticos poderão se beneficiar da percepção criada pela nossa presença na ISS.Claro que, contribuindo com uma pequena fração (1%); do esforço internacional para criá-la, não temos o direito de chamá-la de "estação espacial brasileira". Mas poderemos nos orgulhar de que um pedacinho do Brasil orbitará a Terra nas próximas décadas.Aldo Vieira da Rosa, 81, doutor em engenharia, é professor emérito da Universidade Stanford (EUA);. Foi presidente do Conselho Nacional de Pesquisa, atual CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico);, e fundador do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais);, em 1963.