Vai chover ferro-velho

Vai chover ferro-velho
Sem ter como pagar as despesas de manutenção da Mir, russos decidem
derrubá-la no Oceano Pacífico
O último símbolo de glória do programa espacial soviético está prestes a despencar como um figo podre. Na semana passada, o Kremlin anunciou que finalmente forçará a reentrada na atmosfera da estação orbital Mir, marco tecnológico da corrida espacial, que há catorze anos gira ao redor da Terra a 400 quilômetros de altitude. A estrutura metálica da estação está corroída, de tempo em tempo pipocam incêndios e vazamentos, e para mantê-la flutuando o governo russo precisa gastar 100 milhões de dólares por ano. É muito dinheiro para um país em crise que assumiu o compromisso de participar do consórcio internacional que está construindo uma segunda casa celeste, a Estação Espacial Internacional. Muito mais moderno, montado em parceria com os americanos, o novo hotel orbital vai custar 40 bilhões de dólares.
Deixada à própria sorte, a Mir pode despencar de forma descontrolada sobre qualquer ponto do planeta. A última coisa que o governo do presidente Vladimir Putin quer em seu currículo é mais um vexame tecnológico em escala mundial. “Já tivemos tragédias suficientes neste ano”, disse Yuri Koptev, diretor da Agência EspacialRussa, referindo-se ao naufrágio do submarino Kursk e ao incêndio da torre de TV de Ostankino, em Moscou.
O primeiro passo rumo ao fim da Mirestá sendo planejado. Uma nave de carga teleguiada deve subir à estaçãoem janeiro para abastecer de combustível seus tanques e preparar os detalhes da última viagem, agora de volta para a Terra. A rota planejada prevê a reentrada num ângulo tal que provoque o incêndio da Mir. Os destroços mais resistentes ao calor devem despencar numa área totalmente desabitada, em pleno Oceano Pacífico, a 1.600 quilômetros a leste da costa australiana. O combustível servirá para que os motores da estaçãoa lancem contra a atmosfera terrestre em alta velocidade. Isso fará com que a maior parte de suas 140 toneladas, hoje divididas numa estrutura formada por seis módulos, se queime. Mesmo assim, é possível que cheguem à superfície da Terra pedaços com peso até 700 quilos. Acelerados pela força da gravidade, eles cairão com força suficiente para esmigalhar uma parede de concreto reforçada, com 2 metros de espessura. Os russos calculam que o arremesso final ocorra entre 26 e 28 de fevereiro.
Desativar a estaçãonão é preocupação recente. A queda já chegou a ser anunciada em 1998, quando a estaçãohavia ultrapassado em sete anos o prazo de vida útil dos equipamentos. A decisão acabou sendo alterada por pura teimosia e pela importância simbólica da Mir. Seu lançamento, em 1986, foi um duro golpe no ego dos responsáveis pelo programa espacialamericano. Eles nunca puderam construir sozinhos uma estrutura parecida. No espaço, a Mirserviu de base para a realização de 20.000 experiências científicas, feitas por 100 astronautas de doze países. Foi cenário de recordes, como o de Valeri Polyakov, que passou 438 dias no espaço, façanha jamais igualada. Foi palco também de acidentes assustadores, como a batida com uma nave cargueira que destruiu os painéis de energia, em 1997. O desastre, que abriu um rombo na fuselagem da estação, colocou em risco a vida dos três tripulantes, entre eles um americano.
Os russos acreditavam que seria possível conseguir empresas interessadas em financiar o custeio da estação. No começo deste ano, uma empresa privada com sede na Holanda, a MirCorp, formada por apaixonados investidores internacionais, acenou com a possibilidade de garantir recursos para preservar a estrutura da estação, que equivale ao tamanho de cinco ônibus enfileirados. Mas as estratégias para levantar recursos esbanjavam desvario. Uma fonte de renda seria a criação de uma espécie de hotel espacialna estação. Cada turista, que viajaria a bordo das naves Soyuz, pagaria pelo passeio 20 milhões de dólares, com direito a pelo menos dez dias em órbita. O primeiro hóspede, o milionário Dennis Tito, deveria viajar ainda em 2001. A MirCorp pretendia também alugar o espaço da nave para locações de filmes e campanhas publicitárias. Todos esses esforços acabaram em fiasco. O governo russo foi obrigado a desviar para a Mirrecursos que deveriam ser destinados à nova estaçãointernacional — o maior e mais ambicioso projeto científico espacialda atualidade. Os parceiros americanos chiaram. Assombrados pelo fantasma de um acidente iminente, finalmente os russos resolveram abrir mão de sua adorada estação espacial.