Arte e pesquisa no espaço

Astronauta brasileiro deve testar em órbita reação de substância que dá luz ao vaga-lume

Arte e pesquisa no espaço
SALVADOR NOGUEIRA
DA REPORTAGEM LOCAL
Operação Vaga-lume na ISS (Estação Espacial Internacional);: em abril, o astronauta Marcos Cesar Pontes fará um experimento para pôr à prova as substâncias responsáveis pela luz que emana do traseiro desses simpáticos insetos.
O objetivo da pesquisa é coletar dados que, no futuro, podem ajudar no desenvolvimento de biossensores ambientais _ou seja, instrumentos de detecção de determinadas substâncias numa determinada amostra. "O mais interessante aí é a nossa linha de pesquisa de biossensores para a Amazônia", diz Aristides Pavani, do CenPRA (Centro de Pesquisas Renato Archer);, em Campinas (interior de São Paulo);.
O dispositivo para os experimentos consiste numa câmara em formato octogonal (oito lados);, ao qual está acoplada uma câmera de vídeo. Em cada parede lateral da câmara há um dispositivo chamado de atomizador (o mecanismo que pega uma determinada substância e a quebra em pequeninas gotas, ejetando-as para o centro da câmara);. Quando as substâncias borrifadas por um dos quatro pares de atomizadores se encontrarem no centro da câmara octogonal, a câmera de vídeo registrará a reação.
"O nosso experimento não é automatizado, o astronauta terá de tomar parte nele intensamente", diz Pavani. "Ele terá de preparar o equipamento, selecionar o par de atomizadores a ser usado e observar a reação. Se, com base nos parâmetros que nós demos a ele, o Marcos achar que não ficou bom, que não deu certo, ele terá de executá-lo novamente. O astronauta agirá do mesmo jeito que um pesquisador faz numa bancada de laboratório."
A principal dupla de substâncias testadas no experimento NIP (sigla para Nuvens de Interação Protéica); é o par luciferina/luciferase, que ao serem reunidas produzem a bioluminescência dos vaga-lumes e de outras criaturas brilhantes existentes na natureza. Mas outros compostos que produzem luz usando energia química também serão testados.
Num primeiro momento, a atenção dos pesquisadores está totalmente voltada para a ciência básica. O que eles querem saber é como essas chamadas nuvens atomizadas (os borrifos de pequenas gotículas); reagem umas com as outras. Mas por que então não fazer isso na Terra? "O problema é que a gravidade mascara alguns efeitos, de forma que fica impossível entender como as coisas acontecem", afirma Pavani.
O problema, diz ele, não é o peso das gotículas borrifadas _muito pequeno para fazer diferença_, mas sim o próprio ar. "No ar, aqui na Terra, nós temos as chamadas correntes de convecção, ou seja, o ar mais quente é mais leve e sobe, o ar mais frio é mais pesado e desce, formando correntes no ar", explica Pavani. "Na microgravidade, você também tem ar quente e ar frio, nenhum dos dois tem peso, então não existem correntes de convecção. Com isso você pode observar exatamente como se dá a reação, sem a influência dos movimentos do ar."
Moral da história: você obtém vislumbres de um processo que, no chão, é confundido pela ação da gravidade sobre os elementos. Para Pavani, esse é só o começo de um entendimento mais profundo sobre a interação dessas substâncias, que no futuro pode auxiliar no desenvolvimento de sensores mais eficientes.
Arte e ciência
O aspecto mais inovador do experimento, no entanto, não é tanto o tema da pesquisa, mas a forma como ela será conduzida. O planejamento e a futura interpretação dos dados coletados serão feitos não só sob um prisma científico, mas sob um que envolve uma certa sensibilidade artística.
"É a primeira vez na história que isso acontece, não só no Brasil, mas internacionalmente", diz José Wagner Garcia, arquiteto de São Paulo com Ph.D. pelo Media Lab do MIT (Instituto de Tecnologia de Massachusetts, nos EUA); que planejou em parceria com Aristides Pavani o experimento a ser realizado na estação espacial. "Ele não é nem artístico nem científico. É um híbrido."
O grupo pretende analisar as imagens filmadas por Pontes da interação das nuvens de proteínas numa "cave", conceito mais conhecido dos artistas do que dos cientistas. Para entendê-lo, basta imaginar uma sala em que projeções dos resultados do experimento recriariam o processo em três dimensões, colocando os cientistas como se eles estivessem no meio da ação. "É um ambiente imersivo, que nos permitirá observar em três dimensões exatamente o que está acontecendo a cada instante no experimento", diz Garcia.
A fundo perdido
A câmera de vídeo que produzirá as imagens tem alta resolução, mas foi bancada "a fundo perdido" pelos pesquisadores. "A única coisa que voltará do experimento são as fitas de vídeo. A câmera ficará lá na estação", diz Garcia. "Um bom presente para os russos, é uma câmera maravilhosa." Ele conta que já teve de assinar um termo de doação do equipamento e revela que as imagens que Pontes filmar a bordo da estação já usarão essa câmera.
Mais do que oferecer novas abordagens e interpretações para fenômenos naturais, levando em conta conceitos de estética (afinal, "a natureza tem também uma fundamentação estética", diz Garcia);, o grupo de Pavani espera inaugurar uma tradição até então desconhecida no Brasil, marcada por essa transdisciplinaridade entre as chamadas "hard sciences" ("ciências duras", na tradução literal); e outros campos do conhecimento com viés artístico.
É um conceito que já é bastante explorado no exterior, em instituições como o MIT, a Universidade Harvard e a Universidade Stanford. "O que tem de mais sedutor nisso tudo é que o espaço foi aberto para isso", diz Garcia. "Acho que o Aristides é o primeiro cientista 'híbrido' que temos aqui no Brasil."
Pavani, de fato, é o maior defensor dessa abordagem inovadora, que pode soar meio estranha a quem está acostumado à suposta rigidez da ciência como forma de produzir conhecimentos. Ele se justifica, usando um exemplo. "Um dos trabalhos que estamos desenvolvendo é um bioindicador, que é baseado no peixe-elétrico", afirma o pesquisador do CenPRA. "Eu, como engenheiro eletricista, nunca ia imaginar que um peixe poderia ser um sensor."