Marcos Cesar Pontes - Odisséia brazuca
Entrevista
Marcos Cesar Pontes
Odisséia brazuca
Aprovado pela Nasa, o piloto de aviões caça Marcos Pontes treina para tornar-se o primeiro brasileiro a ir para o espaço
Laura Capriglione
Aos 35 anos, o capitão da Aeronáutica Marcos Cesar Pontes foi escolhido entre quinze candidatos para ser o primeiro astronauta brasileiro. Aprovado nos exames médicos aplicados pela Nasa no Johnson Space Center, em Houston, Texas, Pontes dará início, no dia 24 de agosto, a dois anos de aulas teóricas sobre como funcionam os ônibus espaciais, além do treinamento prático para a falta de gravidade. Na agenda do capitão Pontes, 2001 já está marcado em vermelho. É quando ele deve ir para o espaço. A odisséia começou em 1981, quando, aos 17 anos, entrou para a Academia da Força Aérea. Depois disso, tornou-se piloto de aviões caça, engenheiro aeronáutico, piloto de provas e oficial de segurança de vôo. Aeronaves supersônicas, como os famosos Mig soviéticos e os F-15, já riscaram o ar sob seu comando. Faltava o espaço. A grande chance veio com a assinatura de um acordo de cooperação entre o Brasil e os Estados Unidos para a construção da Estação Espacial Internacional. O Brasil entrará com 120 milhões de dólares, dos 40 bilhões necessários para colocar o trambolho no ar. Em troca, poderá enfiar a bordo o seu astronauta, além de experimentos nacionais. Casado, pai de dois meninos, Fábio e Ana Carolina, sorriso fácil, o capitão Pontes é o nosso homem do céu.
Veja Quando o homem chegou pela primeira vez à Lua, havia uma mística em torno daqueles astronautas. Gênios do cálculo e da engenharia, com corpo de titã, era o que se dizia deles. O senhor se considera um candidato a super-homem?
Pontes De jeito nenhum. Em primeiro lugar, o estereótipo do astronauta de 1,90 metro, louro, de olhos azuis não corresponde à realidade. Sou baixinho. Tenho apenas 1,68 metro e 73 quilos e mesmo assim, em uma reunião recente dos astronautas da Nasa, pude ficar bem feliz por constatar que eu era um dos mais altos da turma. A profissão de astronauta definitivamente não é para Schwarzeneggers ou Rambos. O grande Neil Armstrong, que deu os primeiros passos na Lua, tinha 1,78 metro. Nós não podemos ser muito grandes. Pelos critérios atuais da Nasa, quem vai ao espaço deve ter no máximo 1,76 metro de altura, já que o ambiente das naves é exíguo, fica difícil se locomover e a carga no espaço custa muito caro. Além disso, numa situação de microgravidade, as coisas pesam algo próximo de zero. Ninguém precisa ter músculos poderosos. Não há pesos para ser levantados.
Veja No que consistiram, então, os testes físicos a que o senhor foi submetido?
Pontes No teste de força, por exemplo, os técnicos da Nasa pediram que eu me concentrasse em demonstrar uma constância muscular. Eu não tinha de ter muita força, mas quando fizesse um esforço não podia tremer. Em outro teste, de claustrofobia, fui colocado sentado em posição de lótus dentro de uma câmara inflável de 1 metro de diâmetro por cerca de meia hora. Toda escura, essa câmara estava dentro de um quarto minúsculo. Meu coração e a respiração foram todo o tempo monitorados. Uma touca de pano sustentava um pequeno microfone em minha testa. Se eu pedisse para ser retirado, eles me atenderiam prontamente. Há quem não agüente, mas eu encontrei uma posição confortável recostado em uma parede da sala e quase adormeci. A única coisa que incomodava um pouco era o calor.
Veja E quanto à parte intelectual?
Pontes Nunca fiz teste de Q.I. Acho esquisito. Se desse acima ou abaixo do normal, me acharia estranho, ficaria preocupado. Acho que tudo é questão de você querer muito fazer alguma coisa, aplicar-se, estudar. Eu venho de uma família simples, a minha mãe era funcionária da rede ferroviária e meu pai, do Instituto Brasileiro do Café. Meu irmão está há quase trinta anos no banco Bandeirantes, onde é gerente. Mas eu encasquetei, quando tinha de 5 para 6 anos, que queria ser piloto de avião. Isso vinha da influência de um tio, que era sargento da Aeronáutica. Costumava visitá-lo com minha família em Pirassununga, no interior de São Paulo, e via aqueles aviões da Esquadrilha da Fumaça. Pensava que talvez pudesse ser piloto um dia. Daí para a idéia de ser astronauta foi um passo. Era 1969, eu tinha 6 anos quando o Armstrong disse aquelas célebres frases enquanto irradiava para a Terra: Este é um pequeno passo para o homem e um salto gigantesco para a humanidade. Quando me convenci de que aquele passo tinha de fato sido dado, e que não era um simples efeito especial da TV, como os que eu via e adorava na série Perdidos no Espaço, aí achei que também eu podia ir.
Veja Milhões de meninos também pensaram isso, mas no Brasil o senhor é o primeiro eleito. Qual é a receita?
Pontes Aos 14 anos entrei no Liceu Noroeste, de Bauru, para fazer técnico em eletrônica. Estudava à noite porque durante o dia trabalhava como eletricista nas oficinas da rede ferroviária. Depois, prestei o vestibular para engenharia elétrica na Unicamp e os concursos para sargento da Aeronáutica e para a Academia da Força Aérea. Passei nos três sem fazer cursinho graças a meus professores do colégio que me emprestavam livros e me ensinavam fora do horário de aulas. Preferi a academia, de onde saí como oficial aviador. Então fui para Natal, onde fiz o curso de piloto de caça. Eu era o ala, aquele piloto que, numa esquadrilha, segue alinhado com o líder. Depois, veio o curso de líder de esquadrilha. Voltei para São Paulo e fui fazer engenharia no Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA. Ao mesmo tempo, no Centro Técnico Aeroespacial, cursei a Escola de Piloto de Provas. Entrei no maravilhoso mundo dos aviões F, os fighters, caças de combate supersônicos americanos. Agora estou fazendo uma pós em engenharia de sistemas na Naval Postgraduate School, da Marinha Americana, em Monterey, na Califórnia.
Veja Qual é o encanto de ir para o espaço? É a sensação de falta de gravidade? É ver a Terra pequenininha?
Pontes Eu piloto aviões desde os 18 anos. Peguei pela primeira vez num manche quase ao mesmo tempo que na direção de um carro. Adoro voar. Já rompi a barreira do som inúmeras vezes, já experimentei situações de microgravidade em vôos em parafuso com um F-15. Também já enfrentei o desconforto que é sentir o corpo esmagado por seu próprio peso. Num caça, pelo efeito da aceleração intensa, o seu peso pode ser multiplicado até por cinco. Estou acostumado a lidar com as máquinas mais desafiadoras. No caso da viagem à estação orbital, o que me entusiasma particularmente é a idéia de passear no espaço, naquilo que chamamos de atividade extraveicular. Poder sair da nave e enfrentar a imensidão do espaço sem a proteção das paredes do ambiente artificial deve ser uma emoção e tanto. Quero me qualificar para isso.
Veja Houston, temos um problema. Essa frase ficou famosa com o caso da Apollo 13, que entrou em pane no espaço e quase matou toda a tripulação. E se Houston, temos um problema for pronunciada na sua viagem?
Pontes Só um louco faz uma viagem dessas sem pensar nos problemas que podem acontecer. A melhor maneira de lidar com esses riscos é pensar exatamente no procedimento que deve ser executado. Isso é parte do treinamento e nos desliga da fobia paralisante. Eu, como piloto, sempre tenho de pensar na possibilidade de a asa do avião se romper. A diferença é que, em vez de pensar Eu vou morrer, que me impediria de voar novamente, eu sou treinado a pensar O procedimento é a ejeção. Se aumentar a vibração, devo diminuir a velocidade. Se o combustível acabar, ou o motor apagar, tenho de estabilizar o avião para um pouso de emergência. É até reconfortante viver sabendo que há procedimentos para lidar com os problemas.
Veja Pilotar o ônibus espacial é mais perigoso do que um caça F-15?
Pontes Isso depende do que deve ser feito em cada uma dessas missões. Até dirigir um carro pode ser mais perigoso. Eu mesmo me sinto bem mais seguro na cabine de um caça supersônico do que viajando de carro na Via Dutra. No avião, sou eu, a máquina e as condições climáticas. No carro, sou eu, a máquina e os outros, que eu não controlo. De todo modo, conta a favor da missão no espaço o fato de o acidente com a Challenger ter servido para que a Nasa reforçasse ainda mais os padrões de segurança das aeronaves.
Veja Chuck Yeager, piloto americano que se tornou herói ao romper, pela primeira vez, a barreira do som, em 1947, dizia que astronautas eram como macacos porque não se esperava que fizessem nada durante o vôo, apenas que agüentassem. Era entrar na cápsula, ficar bem quietinho e voltar à Terra. O senhor é piloto de caça, como Yeager, e será astronauta. Como fica?
Pontes Ao contrário dos aviões comerciais, nos quais há uma atmosfera quase igual àquela existente ao nível do mar, os jatos de caça são semipressurizados. É uma proteção para o piloto, porque se os aviões de combate fossem pressurizados bastaria um tiro na janela do avião e o corpo do piloto literalmente explodiria, já que seu organismo estaria operando a uma pressão bem maior do que a pressão externa. O que se pressuriza para vôos acima de 50000 pés (cerca de 15000 metros); é a roupa, porque senão o corpo entra em colapso. Mas esses homens da época do Yeager subiam sem roupas especiais. Eles eram corajosos e lidavam com situações de risco que ainda não tinham os procedimentos de segurança consolidados. Natural, portanto, que desprezassem os astronautas numa época em que as viagens espaciais eram totalmente controladas por terra. Não se pode esquecer que, então, o astronauta era quase um passageiro. Ele não tinha muitas atividades, e nem daria para comandar aqueles módulos.
Veja E hoje é diferente?
Pontes Completamente. Em primeiro lugar, os ônibus espaciais hoje decolam e aterrissam, não são como os módulos de antigamente, que eram simplesmente lançados no ar e depois despencavam no mar. Além disso, estaremos construindo uma estação orbital nova. Teremos de, literalmente, pôr a mão na massa. Eventualmente, ainda terei de movimentar experimentos científicos de uma pessoa que não estará lá. Não se pode esquecer que as viagens espaciais de trinta anos atrás eram curtíssimas, segundo os padrões atuais. Entre a decolagem e a aterissagem da Apollo 11, passaram-se apenas oito dias. Hoje, o recorde de permanência no espaço é de 437 dias. Os astronautas que na visão de Yeager eram macacos agora têm de ser pilotos, cientistas e técnicos em manutenção.
Veja Quanto tempo durará a sua missão?
Pontes Será de cerca de três meses. Depende muito dos experimentos e da missão.
Veja Será um período difícil?
Pontes No nível físico sei que meu corpo sofrerá muitas mudanças. Conversei há pouco tempo com um astronauta australiano que esteve no espaço durante quatro meses e meio. Ele me falou da sensação de estranheza provocada pela mudança da posição do chão. Como não há gravidade, pouco importa que o chão esteja embaixo ou na parte superior da cabine. É como se estivéssemos naquela passagem em que a Alice vai ao país do espelhos. Outra mudança curiosa ocorre com nossos músculos, já que perdem muitas de suas funções sob situação de gravidade anormal. Para minimizar o problema, os astronautas fazem exercícios duas vezes ao dia. É um pouco estranho, porque para correr, por exemplo, terei de colocar uma espécie de arreio sobre os ombros, preso por cabos ao chão da sala de ginástica. Sem esse expediente, no primeiro passo que der serei projetado para o teto. Mesmo assim, meus pés ficarão macios demais e, na volta à Terra, já sei, doerão muito porque os músculos e tendões estarão desacostumados a suportar meu peso. Até os músculos do pescoço se atrofiam, porque a cabeça fica sem peso. Quando se volta, é duro sustentar a espinha e a cabeça eretas.
Veja O senhor foi escolhido entre quinze candidatos. Em que pontos o senhor foi melhor do que os outros?
Pontes Os quatro finalistas da Força Aérea, que eu conhecia bem, tinham as mesmas condições. Entretanto, acredito que talvez tenha sido o casamento da minha qualificação, idade (eu era o mais novo do grupo); e personalidade. Para atuar em uma estação orbital é preciso uma personalidade que se adapte muito bem ao trabalho de grupo. Não se admitem ímpetos individualistas, explosões de cólera. Isso pode ser muito interessante em outras atividades profissionais. Não na de astronauta, em que a vida de várias pessoas depende da perfeita coordenação entre um grupo muito grande, aí incluídas a equipe de terra e a própria tripulação.
Veja Para o senhor, o homem corajoso é o que não tem medo ou o que tem, mas enfrenta o risco?
Pontes Nenhum dos dois. Coragem é saber trabalhar o medo a seu favor. Suponha alguém que nunca saltou de pára-quedas. Se esse alguém não sentir nada, com certeza tem algum problema psíquico. Também tem algum problema psíquico, talvez um impulso suicida, o que enfrenta o risco por enfrentar. O medo faz parte da vida, é normal. O que se chama de medo na verdade é uma situação na qual o corpo e a mente entram em estado de alerta. A coragem está em saber como manipular essas condições para usá-las a seu favor.
Veja O senhor é engenheiro eletrônico formado pelo ITA, piloto de provas, está fazendo a pós-graduação. Quanto ganha?
Pontes Ganho cerca de 2.200 reais líquidos por mês. Como moro nos Estados Unidos há dois anos por causa dos estudos, os rendimentos de minha família limitam-se a isso, já que minha esposa não pode trabalhar lá. Meus filhos estudam em escola pública gratuita.
Veja Vários astronautas da missão Apollo, como Edgar Mitchell, da Apollo 14, James Irwin, da Apollo 15, e Charles Duke, da Apollo 16, foram para o espaço, viram a luz e viraram uns tipos estranhos, espécie de apóstolos. O senhor é religioso?
Pontes Sou católico, acredito em Deus, mas não tenho superstições. Trabalho com a tecnologia. Faço primeiro, pensando nas coisas boas que virão depois. Tem dado certo.
Marcos Cesar Pontes
Odisséia brazuca
Aprovado pela Nasa, o piloto de aviões caça Marcos Pontes treina para tornar-se o primeiro brasileiro a ir para o espaço
Laura Capriglione
Aos 35 anos, o capitão da Aeronáutica Marcos Cesar Pontes foi escolhido entre quinze candidatos para ser o primeiro astronauta brasileiro. Aprovado nos exames médicos aplicados pela Nasa no Johnson Space Center, em Houston, Texas, Pontes dará início, no dia 24 de agosto, a dois anos de aulas teóricas sobre como funcionam os ônibus espaciais, além do treinamento prático para a falta de gravidade. Na agenda do capitão Pontes, 2001 já está marcado em vermelho. É quando ele deve ir para o espaço. A odisséia começou em 1981, quando, aos 17 anos, entrou para a Academia da Força Aérea. Depois disso, tornou-se piloto de aviões caça, engenheiro aeronáutico, piloto de provas e oficial de segurança de vôo. Aeronaves supersônicas, como os famosos Mig soviéticos e os F-15, já riscaram o ar sob seu comando. Faltava o espaço. A grande chance veio com a assinatura de um acordo de cooperação entre o Brasil e os Estados Unidos para a construção da Estação Espacial Internacional. O Brasil entrará com 120 milhões de dólares, dos 40 bilhões necessários para colocar o trambolho no ar. Em troca, poderá enfiar a bordo o seu astronauta, além de experimentos nacionais. Casado, pai de dois meninos, Fábio e Ana Carolina, sorriso fácil, o capitão Pontes é o nosso homem do céu.
Veja Quando o homem chegou pela primeira vez à Lua, havia uma mística em torno daqueles astronautas. Gênios do cálculo e da engenharia, com corpo de titã, era o que se dizia deles. O senhor se considera um candidato a super-homem?
Pontes De jeito nenhum. Em primeiro lugar, o estereótipo do astronauta de 1,90 metro, louro, de olhos azuis não corresponde à realidade. Sou baixinho. Tenho apenas 1,68 metro e 73 quilos e mesmo assim, em uma reunião recente dos astronautas da Nasa, pude ficar bem feliz por constatar que eu era um dos mais altos da turma. A profissão de astronauta definitivamente não é para Schwarzeneggers ou Rambos. O grande Neil Armstrong, que deu os primeiros passos na Lua, tinha 1,78 metro. Nós não podemos ser muito grandes. Pelos critérios atuais da Nasa, quem vai ao espaço deve ter no máximo 1,76 metro de altura, já que o ambiente das naves é exíguo, fica difícil se locomover e a carga no espaço custa muito caro. Além disso, numa situação de microgravidade, as coisas pesam algo próximo de zero. Ninguém precisa ter músculos poderosos. Não há pesos para ser levantados.
Veja No que consistiram, então, os testes físicos a que o senhor foi submetido?
Pontes No teste de força, por exemplo, os técnicos da Nasa pediram que eu me concentrasse em demonstrar uma constância muscular. Eu não tinha de ter muita força, mas quando fizesse um esforço não podia tremer. Em outro teste, de claustrofobia, fui colocado sentado em posição de lótus dentro de uma câmara inflável de 1 metro de diâmetro por cerca de meia hora. Toda escura, essa câmara estava dentro de um quarto minúsculo. Meu coração e a respiração foram todo o tempo monitorados. Uma touca de pano sustentava um pequeno microfone em minha testa. Se eu pedisse para ser retirado, eles me atenderiam prontamente. Há quem não agüente, mas eu encontrei uma posição confortável recostado em uma parede da sala e quase adormeci. A única coisa que incomodava um pouco era o calor.
Veja E quanto à parte intelectual?
Pontes Nunca fiz teste de Q.I. Acho esquisito. Se desse acima ou abaixo do normal, me acharia estranho, ficaria preocupado. Acho que tudo é questão de você querer muito fazer alguma coisa, aplicar-se, estudar. Eu venho de uma família simples, a minha mãe era funcionária da rede ferroviária e meu pai, do Instituto Brasileiro do Café. Meu irmão está há quase trinta anos no banco Bandeirantes, onde é gerente. Mas eu encasquetei, quando tinha de 5 para 6 anos, que queria ser piloto de avião. Isso vinha da influência de um tio, que era sargento da Aeronáutica. Costumava visitá-lo com minha família em Pirassununga, no interior de São Paulo, e via aqueles aviões da Esquadrilha da Fumaça. Pensava que talvez pudesse ser piloto um dia. Daí para a idéia de ser astronauta foi um passo. Era 1969, eu tinha 6 anos quando o Armstrong disse aquelas célebres frases enquanto irradiava para a Terra: Este é um pequeno passo para o homem e um salto gigantesco para a humanidade. Quando me convenci de que aquele passo tinha de fato sido dado, e que não era um simples efeito especial da TV, como os que eu via e adorava na série Perdidos no Espaço, aí achei que também eu podia ir.
Veja Milhões de meninos também pensaram isso, mas no Brasil o senhor é o primeiro eleito. Qual é a receita?
Pontes Aos 14 anos entrei no Liceu Noroeste, de Bauru, para fazer técnico em eletrônica. Estudava à noite porque durante o dia trabalhava como eletricista nas oficinas da rede ferroviária. Depois, prestei o vestibular para engenharia elétrica na Unicamp e os concursos para sargento da Aeronáutica e para a Academia da Força Aérea. Passei nos três sem fazer cursinho graças a meus professores do colégio que me emprestavam livros e me ensinavam fora do horário de aulas. Preferi a academia, de onde saí como oficial aviador. Então fui para Natal, onde fiz o curso de piloto de caça. Eu era o ala, aquele piloto que, numa esquadrilha, segue alinhado com o líder. Depois, veio o curso de líder de esquadrilha. Voltei para São Paulo e fui fazer engenharia no Instituto Tecnológico de Aeronáutica, o ITA. Ao mesmo tempo, no Centro Técnico Aeroespacial, cursei a Escola de Piloto de Provas. Entrei no maravilhoso mundo dos aviões F, os fighters, caças de combate supersônicos americanos. Agora estou fazendo uma pós em engenharia de sistemas na Naval Postgraduate School, da Marinha Americana, em Monterey, na Califórnia.
Veja Qual é o encanto de ir para o espaço? É a sensação de falta de gravidade? É ver a Terra pequenininha?
Pontes Eu piloto aviões desde os 18 anos. Peguei pela primeira vez num manche quase ao mesmo tempo que na direção de um carro. Adoro voar. Já rompi a barreira do som inúmeras vezes, já experimentei situações de microgravidade em vôos em parafuso com um F-15. Também já enfrentei o desconforto que é sentir o corpo esmagado por seu próprio peso. Num caça, pelo efeito da aceleração intensa, o seu peso pode ser multiplicado até por cinco. Estou acostumado a lidar com as máquinas mais desafiadoras. No caso da viagem à estação orbital, o que me entusiasma particularmente é a idéia de passear no espaço, naquilo que chamamos de atividade extraveicular. Poder sair da nave e enfrentar a imensidão do espaço sem a proteção das paredes do ambiente artificial deve ser uma emoção e tanto. Quero me qualificar para isso.
Veja Houston, temos um problema. Essa frase ficou famosa com o caso da Apollo 13, que entrou em pane no espaço e quase matou toda a tripulação. E se Houston, temos um problema for pronunciada na sua viagem?
Pontes Só um louco faz uma viagem dessas sem pensar nos problemas que podem acontecer. A melhor maneira de lidar com esses riscos é pensar exatamente no procedimento que deve ser executado. Isso é parte do treinamento e nos desliga da fobia paralisante. Eu, como piloto, sempre tenho de pensar na possibilidade de a asa do avião se romper. A diferença é que, em vez de pensar Eu vou morrer, que me impediria de voar novamente, eu sou treinado a pensar O procedimento é a ejeção. Se aumentar a vibração, devo diminuir a velocidade. Se o combustível acabar, ou o motor apagar, tenho de estabilizar o avião para um pouso de emergência. É até reconfortante viver sabendo que há procedimentos para lidar com os problemas.
Veja Pilotar o ônibus espacial é mais perigoso do que um caça F-15?
Pontes Isso depende do que deve ser feito em cada uma dessas missões. Até dirigir um carro pode ser mais perigoso. Eu mesmo me sinto bem mais seguro na cabine de um caça supersônico do que viajando de carro na Via Dutra. No avião, sou eu, a máquina e as condições climáticas. No carro, sou eu, a máquina e os outros, que eu não controlo. De todo modo, conta a favor da missão no espaço o fato de o acidente com a Challenger ter servido para que a Nasa reforçasse ainda mais os padrões de segurança das aeronaves.
Veja Chuck Yeager, piloto americano que se tornou herói ao romper, pela primeira vez, a barreira do som, em 1947, dizia que astronautas eram como macacos porque não se esperava que fizessem nada durante o vôo, apenas que agüentassem. Era entrar na cápsula, ficar bem quietinho e voltar à Terra. O senhor é piloto de caça, como Yeager, e será astronauta. Como fica?
Pontes Ao contrário dos aviões comerciais, nos quais há uma atmosfera quase igual àquela existente ao nível do mar, os jatos de caça são semipressurizados. É uma proteção para o piloto, porque se os aviões de combate fossem pressurizados bastaria um tiro na janela do avião e o corpo do piloto literalmente explodiria, já que seu organismo estaria operando a uma pressão bem maior do que a pressão externa. O que se pressuriza para vôos acima de 50000 pés (cerca de 15000 metros); é a roupa, porque senão o corpo entra em colapso. Mas esses homens da época do Yeager subiam sem roupas especiais. Eles eram corajosos e lidavam com situações de risco que ainda não tinham os procedimentos de segurança consolidados. Natural, portanto, que desprezassem os astronautas numa época em que as viagens espaciais eram totalmente controladas por terra. Não se pode esquecer que, então, o astronauta era quase um passageiro. Ele não tinha muitas atividades, e nem daria para comandar aqueles módulos.
Veja E hoje é diferente?
Pontes Completamente. Em primeiro lugar, os ônibus espaciais hoje decolam e aterrissam, não são como os módulos de antigamente, que eram simplesmente lançados no ar e depois despencavam no mar. Além disso, estaremos construindo uma estação orbital nova. Teremos de, literalmente, pôr a mão na massa. Eventualmente, ainda terei de movimentar experimentos científicos de uma pessoa que não estará lá. Não se pode esquecer que as viagens espaciais de trinta anos atrás eram curtíssimas, segundo os padrões atuais. Entre a decolagem e a aterissagem da Apollo 11, passaram-se apenas oito dias. Hoje, o recorde de permanência no espaço é de 437 dias. Os astronautas que na visão de Yeager eram macacos agora têm de ser pilotos, cientistas e técnicos em manutenção.
Veja Quanto tempo durará a sua missão?
Pontes Será de cerca de três meses. Depende muito dos experimentos e da missão.
Veja Será um período difícil?
Pontes No nível físico sei que meu corpo sofrerá muitas mudanças. Conversei há pouco tempo com um astronauta australiano que esteve no espaço durante quatro meses e meio. Ele me falou da sensação de estranheza provocada pela mudança da posição do chão. Como não há gravidade, pouco importa que o chão esteja embaixo ou na parte superior da cabine. É como se estivéssemos naquela passagem em que a Alice vai ao país do espelhos. Outra mudança curiosa ocorre com nossos músculos, já que perdem muitas de suas funções sob situação de gravidade anormal. Para minimizar o problema, os astronautas fazem exercícios duas vezes ao dia. É um pouco estranho, porque para correr, por exemplo, terei de colocar uma espécie de arreio sobre os ombros, preso por cabos ao chão da sala de ginástica. Sem esse expediente, no primeiro passo que der serei projetado para o teto. Mesmo assim, meus pés ficarão macios demais e, na volta à Terra, já sei, doerão muito porque os músculos e tendões estarão desacostumados a suportar meu peso. Até os músculos do pescoço se atrofiam, porque a cabeça fica sem peso. Quando se volta, é duro sustentar a espinha e a cabeça eretas.
Veja O senhor foi escolhido entre quinze candidatos. Em que pontos o senhor foi melhor do que os outros?
Pontes Os quatro finalistas da Força Aérea, que eu conhecia bem, tinham as mesmas condições. Entretanto, acredito que talvez tenha sido o casamento da minha qualificação, idade (eu era o mais novo do grupo); e personalidade. Para atuar em uma estação orbital é preciso uma personalidade que se adapte muito bem ao trabalho de grupo. Não se admitem ímpetos individualistas, explosões de cólera. Isso pode ser muito interessante em outras atividades profissionais. Não na de astronauta, em que a vida de várias pessoas depende da perfeita coordenação entre um grupo muito grande, aí incluídas a equipe de terra e a própria tripulação.
Veja Para o senhor, o homem corajoso é o que não tem medo ou o que tem, mas enfrenta o risco?
Pontes Nenhum dos dois. Coragem é saber trabalhar o medo a seu favor. Suponha alguém que nunca saltou de pára-quedas. Se esse alguém não sentir nada, com certeza tem algum problema psíquico. Também tem algum problema psíquico, talvez um impulso suicida, o que enfrenta o risco por enfrentar. O medo faz parte da vida, é normal. O que se chama de medo na verdade é uma situação na qual o corpo e a mente entram em estado de alerta. A coragem está em saber como manipular essas condições para usá-las a seu favor.
Veja O senhor é engenheiro eletrônico formado pelo ITA, piloto de provas, está fazendo a pós-graduação. Quanto ganha?
Pontes Ganho cerca de 2.200 reais líquidos por mês. Como moro nos Estados Unidos há dois anos por causa dos estudos, os rendimentos de minha família limitam-se a isso, já que minha esposa não pode trabalhar lá. Meus filhos estudam em escola pública gratuita.
Veja Vários astronautas da missão Apollo, como Edgar Mitchell, da Apollo 14, James Irwin, da Apollo 15, e Charles Duke, da Apollo 16, foram para o espaço, viram a luz e viraram uns tipos estranhos, espécie de apóstolos. O senhor é religioso?
Pontes Sou católico, acredito em Deus, mas não tenho superstições. Trabalho com a tecnologia. Faço primeiro, pensando nas coisas boas que virão depois. Tem dado certo.

