O filho do trovão
Hubble tira fotos nítidas do fim do Universo
CLAUDINÊ GONÇALVES
Especial para a Folha, de Berna
O astronauta suíço Claude Nicollier, 50, é o único europeu a pertencer ao "staff" da Nasa, a agência espacial americana. Ele é astrônomo e astrofísico, piloto militar e piloto de testes, e, pelo menos por enquanto, passou a vida voando, cada vez mais alto ou mais longe.
Nicollier abandonou a carreira de piloto comercial da Swissair para tentar a de astronauta e ficou 17 anos treinando na Nasa, à espera de seu primeiro vôo, em julho de 92, com o ônibus espacial Atlantis.
Em dezembro passado, ficou 11 dias na nave Endeavour, a 600 kms da Terra, na missão que consertou a miopia do telescópio Hubble, que começa agora a enviar imagens que ajudarão a compreender a orígem do Universo.
Discreto, reservado e muito cordial, Nicollier explicou sua missão em entrevista exclusiva à Folha, por telefone, do centro espacial de Houston, no Texas.
*
F - Para o sr. qual foi o momento mais delicado da missão?
N - A aproximação final e a captura do telescópio com o braço telemanipulador (red. esta é a tradução literal do termo que ele utiliza);, que eu comandava, era uma fase extremamente crítica. Nós havíamos treinado muito no simulador mas, para mim, era uma responsabilidade enorme segurar aquele instrumento de 2 bilhões de dólares. Além disso, nós queríamos economizar um pouco de combustível e quando eu disse ao comandante "tudo bem, já o agarrei", o Hubble ainda derivava.
F - E as saídas de seus colegas, em escafandro, também não eram operações delicadas?
N - Claro que sim. Eu devia comandar o braço para levá-los a diferentes lugares dentro da cabina e perto do telescópio para que pudessem trabalhar. Essa fase ficou um pouco dispersa no tempo porque durou cinco dias mas houve momentos muito intensos. Quando Musgrave perdeu um parafuso, por exemplo, tive que agir rapidamente porque o parafuso ia a 10 ou 20 cm/segundo e eu o via brilhando ao sol. Corrigi a posição do braço e Hoffmann pode pegá-lo em menos de 30 segundos.
F - Parece que o sr. se entusiasma mais com o Hubble enquanto astrônomo do que como astronauta...
N - De certa maneira, é verdade. Foi muito emocionante vê-lo pela janela, tão perto de mim, porque o Hubble é um instrumento mágico e não simplesmente um amontoado de sistemas ópticos, eletrônicos e mecânicos. Ele vai muito além da matéria que contém: é o olho mais perfeito que a humanidade tem sobre o Universo. A partir das descobertas que ele pode proporcionar, os astrônomos provavelmente serão obrigados a reescrever os livros de Astronomia.
F - Daí a necessidade de consertar seu espelho?
N - Para a ciência, a importancia do telescópio espacial é comparável á invenção da luneta astronômica por Galileu, em 1609, e mesmo com o defeito no espelho principal, em três anos de serviço o Hubble já forneceu informações extraordinárias que já permitiram confirmar hipóteses como os buracos negros, as miragens gravitacionais e os sistemas planetários em formação.
F - O sr. pode dar um exemplo concreto?
N - Através dele, pudemos observar a galáxia mais longínqua que vimos, designada como 4C41.17. Sua luminosidade levou 10 bilhões de anos-luz para chegar até nós, o que significa que ela data do início do Universo, de uma época próxima do "big bang". O telescópio é uma espécie de máquina de regressão do tempo. Ver um objeto como ele era no início do Universo permite melhor compreendê- lo. Se você só frequenta adultos, fica difícil compreender a evolução do homem; fica mais fácil, quando você observa adolescentes, crianças e bebês. É isso, com Hubble, dá para descobrir galáxias que ainda são bebês.
F - Se o Hubble fosse seu, para quê o sr. o utilizaria?
N - Começaria a estudar as distâncias cósmicas. Sempre fui fascinado pelas galáxias e pela idéia de fixar as dimensões do Universo para melhor compreendê-lo. Até agora, conseguimos medir relativamente bem as distancias das estrelas próximas e, quanto mais distantes, mais imprecisas são as medidas. Aliás, Edwin Hubble foi um astrônomo americano que, nos anos 20, ao medir as distancias das galáxias, concluiu que elas se distanciam e que, quanto maior a distancia, mais rápido é esse distanciamento. Isso significa que o Universo está em expansão. Ora, o telescópio espacial permitirá medir com mais precisão a idade do Universo e sua velocidade de expansão.
F - E aqui mais perto de nós, no nosso sistema solar, o Hubble não vai fazer nada?
N - Ele já forneceu fotos detalhadas de Júpiter e Saturno, principalmente. Vamos poder observar agora a evolução climática desses países. Comparadas com as fotos enviadas pelas sonda Voyager, é como como a diferença entre um cartão postal e um filme longa metragem. Com ele, também já sabemos mais sobre Plutão, o único planeta não explorado anteriormente pelas sondas espaciais.
F - O Hubble poderá descobrir outros planetas, fora do sistema solar?
N - É bem possível. Daqui da Terra, já havíamos detectado discos de gases e poeira á volta de quatro estrelas relativamente próximas. O Hubble já descobriu discos similares em mais de quinze estrelas jovens na nebulosa de Orion, o que indica que nosso sistema planetário não é nada excepcional.
F - Mudando de assunto, o sr. lá de longe, pelo rádio, o sr.falou da fragilidade da Terra. A que o sr. se referia?
N - Falei da beleza e da fragilidade da Terra. Quanto da minha primeira missão, STS-46 (n.d.r. Sistema de Transporte Espacial);, em julho de 92, vimos desmatamento e queimadas em várias regiões como o Brasil, partes da Africa e da Oceania. Desta vez, no STS-61, fizemos a mesma constatação, mas não vimos quase nada do Brasil, encoberto por nuvens durante nossas passagens diurnas.
F - Os conhecimentos dessas viagens espaciais não serão reservados aos países ricos do hemisfério norte?
N - Acho que não, principalmente os dessa última viagem que trará conhecimentos na área da Astronomia, do conhecimento do Universo. Certo, isso será explorado antes pelos astrônomos mas que depois se extendem a toda a humanidade.
F - Para um homem como sr. depois de duas viagens espaciais, problemas como a fome, a guerra na Bósnia ou na Somália, inflação etc. não se tornam derrisórios?
N - Derrisórios, não. É preciso colocar as coisas em perspectiva. Acho que fizemos algo fantástico, que excita a imaginação de muita gente, mas isso é apenas parte da realidade. Há muitos problemas a resolver em nosso planeta e devemos continuar a trabalhar para resolvê-los. Mas é verdade que também precisamos sonhar, não um sonho bobo e sim um sonho inteligente. Penso que é muito sadio para a humanidade ser capaz de sonhar durante alguns dias com uma missão como a nossa e durante os próximos anos com os resultados do Hubble.
CLAUDINÊ GONÇALVES
Especial para a Folha, de Berna
O astronauta suíço Claude Nicollier, 50, é o único europeu a pertencer ao "staff" da Nasa, a agência espacial americana. Ele é astrônomo e astrofísico, piloto militar e piloto de testes, e, pelo menos por enquanto, passou a vida voando, cada vez mais alto ou mais longe.
Nicollier abandonou a carreira de piloto comercial da Swissair para tentar a de astronauta e ficou 17 anos treinando na Nasa, à espera de seu primeiro vôo, em julho de 92, com o ônibus espacial Atlantis.
Em dezembro passado, ficou 11 dias na nave Endeavour, a 600 kms da Terra, na missão que consertou a miopia do telescópio Hubble, que começa agora a enviar imagens que ajudarão a compreender a orígem do Universo.
Discreto, reservado e muito cordial, Nicollier explicou sua missão em entrevista exclusiva à Folha, por telefone, do centro espacial de Houston, no Texas.
*
F - Para o sr. qual foi o momento mais delicado da missão?
N - A aproximação final e a captura do telescópio com o braço telemanipulador (red. esta é a tradução literal do termo que ele utiliza);, que eu comandava, era uma fase extremamente crítica. Nós havíamos treinado muito no simulador mas, para mim, era uma responsabilidade enorme segurar aquele instrumento de 2 bilhões de dólares. Além disso, nós queríamos economizar um pouco de combustível e quando eu disse ao comandante "tudo bem, já o agarrei", o Hubble ainda derivava.
F - E as saídas de seus colegas, em escafandro, também não eram operações delicadas?
N - Claro que sim. Eu devia comandar o braço para levá-los a diferentes lugares dentro da cabina e perto do telescópio para que pudessem trabalhar. Essa fase ficou um pouco dispersa no tempo porque durou cinco dias mas houve momentos muito intensos. Quando Musgrave perdeu um parafuso, por exemplo, tive que agir rapidamente porque o parafuso ia a 10 ou 20 cm/segundo e eu o via brilhando ao sol. Corrigi a posição do braço e Hoffmann pode pegá-lo em menos de 30 segundos.
F - Parece que o sr. se entusiasma mais com o Hubble enquanto astrônomo do que como astronauta...
N - De certa maneira, é verdade. Foi muito emocionante vê-lo pela janela, tão perto de mim, porque o Hubble é um instrumento mágico e não simplesmente um amontoado de sistemas ópticos, eletrônicos e mecânicos. Ele vai muito além da matéria que contém: é o olho mais perfeito que a humanidade tem sobre o Universo. A partir das descobertas que ele pode proporcionar, os astrônomos provavelmente serão obrigados a reescrever os livros de Astronomia.
F - Daí a necessidade de consertar seu espelho?
N - Para a ciência, a importancia do telescópio espacial é comparável á invenção da luneta astronômica por Galileu, em 1609, e mesmo com o defeito no espelho principal, em três anos de serviço o Hubble já forneceu informações extraordinárias que já permitiram confirmar hipóteses como os buracos negros, as miragens gravitacionais e os sistemas planetários em formação.
F - O sr. pode dar um exemplo concreto?
N - Através dele, pudemos observar a galáxia mais longínqua que vimos, designada como 4C41.17. Sua luminosidade levou 10 bilhões de anos-luz para chegar até nós, o que significa que ela data do início do Universo, de uma época próxima do "big bang". O telescópio é uma espécie de máquina de regressão do tempo. Ver um objeto como ele era no início do Universo permite melhor compreendê- lo. Se você só frequenta adultos, fica difícil compreender a evolução do homem; fica mais fácil, quando você observa adolescentes, crianças e bebês. É isso, com Hubble, dá para descobrir galáxias que ainda são bebês.
F - Se o Hubble fosse seu, para quê o sr. o utilizaria?
N - Começaria a estudar as distâncias cósmicas. Sempre fui fascinado pelas galáxias e pela idéia de fixar as dimensões do Universo para melhor compreendê-lo. Até agora, conseguimos medir relativamente bem as distancias das estrelas próximas e, quanto mais distantes, mais imprecisas são as medidas. Aliás, Edwin Hubble foi um astrônomo americano que, nos anos 20, ao medir as distancias das galáxias, concluiu que elas se distanciam e que, quanto maior a distancia, mais rápido é esse distanciamento. Isso significa que o Universo está em expansão. Ora, o telescópio espacial permitirá medir com mais precisão a idade do Universo e sua velocidade de expansão.
F - E aqui mais perto de nós, no nosso sistema solar, o Hubble não vai fazer nada?
N - Ele já forneceu fotos detalhadas de Júpiter e Saturno, principalmente. Vamos poder observar agora a evolução climática desses países. Comparadas com as fotos enviadas pelas sonda Voyager, é como como a diferença entre um cartão postal e um filme longa metragem. Com ele, também já sabemos mais sobre Plutão, o único planeta não explorado anteriormente pelas sondas espaciais.
F - O Hubble poderá descobrir outros planetas, fora do sistema solar?
N - É bem possível. Daqui da Terra, já havíamos detectado discos de gases e poeira á volta de quatro estrelas relativamente próximas. O Hubble já descobriu discos similares em mais de quinze estrelas jovens na nebulosa de Orion, o que indica que nosso sistema planetário não é nada excepcional.
F - Mudando de assunto, o sr. lá de longe, pelo rádio, o sr.falou da fragilidade da Terra. A que o sr. se referia?
N - Falei da beleza e da fragilidade da Terra. Quanto da minha primeira missão, STS-46 (n.d.r. Sistema de Transporte Espacial);, em julho de 92, vimos desmatamento e queimadas em várias regiões como o Brasil, partes da Africa e da Oceania. Desta vez, no STS-61, fizemos a mesma constatação, mas não vimos quase nada do Brasil, encoberto por nuvens durante nossas passagens diurnas.
F - Os conhecimentos dessas viagens espaciais não serão reservados aos países ricos do hemisfério norte?
N - Acho que não, principalmente os dessa última viagem que trará conhecimentos na área da Astronomia, do conhecimento do Universo. Certo, isso será explorado antes pelos astrônomos mas que depois se extendem a toda a humanidade.
F - Para um homem como sr. depois de duas viagens espaciais, problemas como a fome, a guerra na Bósnia ou na Somália, inflação etc. não se tornam derrisórios?
N - Derrisórios, não. É preciso colocar as coisas em perspectiva. Acho que fizemos algo fantástico, que excita a imaginação de muita gente, mas isso é apenas parte da realidade. Há muitos problemas a resolver em nosso planeta e devemos continuar a trabalhar para resolvê-los. Mas é verdade que também precisamos sonhar, não um sonho bobo e sim um sonho inteligente. Penso que é muito sadio para a humanidade ser capaz de sonhar durante alguns dias com uma missão como a nossa e durante os próximos anos com os resultados do Hubble.

