Terra isolada

Astrônomo alerta para o excesso de iluminação, ondas de rádio e destroços em órbita que tornam cada vez mais difícil o estudo do Universo por observatórios no planeta
Terra isolada
Marcelo Ferroni
Editor-assistente de Ciência

Astrônomos captam, a partir de um observatório em Terra, imagens de uma região a milhares de anos-luz, em que novas estrelas estão se formando continuamente. As imagens, no entanto, precisam ser jogadas fora. Traços luminosos rasgam as imagens de cima a baixo; é a interferência de satélites ao redor da Terra, que, ao passar pelo raio de visão dos telescópios, ofuscam a imagem ao refletir a luz do Sol.
Em outro observatório, detecções por meio de radiotelescópios _instrumentos que medem ondas de rádio vindas do Universo_ captam somente a interferência de equipamentos russos colocados em órbita para fornecer um detalhado sistema de navegação na Terra. Telescópios em cidades grandes têm problema semelhante. Eles não conseguem mais detectar sinais luminosos de pouca intensidade _é a luz das casas, postes e carros, que tornam as estrelas invisíveis.
"Cidadãos modernos dificilmente sabem como se parecem as estrelas". É o que diz Johannes Andersen, 53, secretário-geral da União Astronômica Internacional (IAU, na sigla em inglês); e autor de um estudo perturbador: a Terra está se isolando do resto do Universo.
"O planeta não está se isolando no senso ordinário da palavra. Por exemplo, meteoritos e corpos maiores do Sistema Solar continuarão a cair na Terra", disse Andersen, em entrevista por e-mail à Folha. "Mas uma fração cada vez maior de sinais do Universo, sejam eles de fontes cósmicas ou potencialmente de outras civilizações, agora naufragam no barulho produzido pelo homem. E a tendência está subindo dramaticamente."
O pesquisador, casado com "outra astrônoma que faz observações ativamente" e pai de três filhos, publicou sua análise em uma edição do final do mês passado da revista norte-americana "Science". Segundo ele, problemas de iluminação, excesso de sinais de rádio e de outras frequências de onda e uma grande quantidade de satélites e destroços em órbita fazem com que as observações astronômicas sejam cada vez mais difíceis.
"Apesar de o Universo ser infinito, o espaço, considerado uma fronteira infindável para negócios lucrativos, é na realidade apenas uma tênue camada ao redor da Terra", escreveu Andersen, com uma clareza difícil de encontrar em outros artigos da "Science". A maior altitude em que os satélites são colocados é de 36 mil quilômetros, o que é menos que um décimo da distância da Terra à Lua. "Assim, nosso espaço sem fronteiras é na verdade minúsculo, se comparado ao tamanho do Universo que tentamos observar."
A ocupação dessa fina camada de espaço, seja por satélites, seja pelo amontoado de frequências, torna as observações cada vez mais difíceis. "Seja da Via Láctea ou das fronteiras do Universo, no início do tempo, os sinais que chegam até nós são incrivelmente tênues", escreveu Andersen. Segundo ele, a radiação total coletada por todos os radiotelescópios do mundo durante a última metade do século seria suficiente para acender uma lâmpada comum por um milisegundo (a milésima parte de um segundo);.
Luz e ondas de rádio - Para Andersen, o problema mais fácil de ser combatido é o do excesso de luminosidade das cidades. "É claro que não podemos resolver o problema colocando a Terra em total escuridão, mas podemos desligar as lâmpadas 'estúpidas' que geralmente brilham pelos céus sem nenhuma função", disse.
O astrônomo cita o trabalho de uma ONG (organização não-governamental); chamada Dark-Sky (http:// www.darksky.org/);, que propõe formas de substituir as lâmpadas comuns. O grupo cita modelos de postes e outras fontes de iluminação que impedem que a luz se propague para o céu. "É como comprar um carro melhor, que consome menos combustível e polui menos; a diferença é que isso dá um retorno mais imediato."
A questão da emissão descontrolada de ondas de rádio e em outras frequências é mais grave e de difícil solução. As transmissões de satélites se confundem com as ondas que vêm do Universo, causando um embaralhamento de "sons".
"Se Neil Armstrong tivesse levado à Lua um telefone celular, ele provavelmente seria uma das quatro mais intensas fontes de ondas de rádio do céu. Os sinais de galáxias remotas são milhões de vezes mais fracos que isso", escreveu Andersen, em mais uma comparação inusitada para artigos da "Science".
Um acordo firmado pela União Internacional de Telecomunicações (ITU, na sigla em inglês); previa a reserva de algumas bandas de frequência exclusivamente para uso da radioastronomia. No entanto, ressalta Andersen, conforme se aprimora a tecnologia de detecção dessas ondas do Universo, uma maior banda dessas frequências é necessária.
Mas o espaço está restrito, e a interferência de satélites em órbita dificulta as observações. "Grandes frações do espectro dessas ondas já foram perdidas, seja por design ou acidente", disse o pesquisador. "Por exemplo, os satélites russos de GPS (Sistema de Posicionamento Global); enviam sinais de grande intensidade próximos, mas não precisamente na mesma frequência, de algumas linhas de rádio importantes. No entanto, os transmissores têm um design 'barulhento', e esse ruído elimina a radioastronomia em uma frequência ampla, além da previamente estipulada."
Tranqueiras cósmicas - O terceiro problema citado por Andersen, o excesso de "tranqueiras orbitais", já foi apontado por outro estudo recente, publicado na "Nature" por pesquisadores italianos. "Há atualmente 10 mil objetos maiores que 10 cm a 20 cm orbitando a Terra, e 100 mil objetos com mais de 1 cm de largura", escreveram A. Rossi e P. Farinella, da Universidade de Trieste, em junho de 1999. "Mesmo projéteis de 1 cm podem danificar satélites."
A Estação Espacial Internacional (ISS, na sigla em inglês);, é um dos projetos que podem sofrer mais com a quantidade de destroços em órbita. "A quantidade total de fragmentos é de 2 milhões a 3 milhões de quilos, com cerca de 8.000 objetos em órbitas bem determinadas", diz o artigo da "Science".
Além de um perigo em potencial, o superpovoamento das duas principais órbitas de satélites _a LEO (órbita próxima da Terra);, a cerca de 5.500 km de altitude, e a GEO (órbita geoestacionária);, a 36 mil quilômetros_ prejudica também a observação em terra. O reflexo do Sol nesses corpos e partículas prejudica a qualidade das imagens. "Muitas observações são perdidas dessa forma, inclusive algumas que fiz", disse Andersen.
Nesse caso, a solução é difícil. Até agora, os projetos apresentados são extremamente caros ou carecem de um planejamento mais detalhado. "No momento, o foco é fazer com que o problema cresça a níveis cada vez menores, como no caso da emissão dos gases-estufa (gases como o gás carbônico, que contribuem para o aumento do aquecimento global);."
O pesquisador se mostra preocupado com a situação atual, mas indica que, a longo prazo, a conscientização pode reverter essas questões. "O público está começando a perceber que esse é o início de mais um desastre ambiental, devido à exploração exacerbada de um recurso natural que as empresas declaram ser infinito e inexaustivo _acredito que os brasileiros já tenham ouvido isso antes", disse Andersen. "E alguns projetos muito ambiciosos estão sofrendo falências espetaculares, que lembram as empresas que nenhum lucro é infinito, apenas temporário". Maio 2000
Edição 25.967 Domingo, 07/05/2000 Tiragem 674,557
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